domingo, 29 de dezembro de 2019

Vazio

Há um vazio que sorrateiramente se acomoda em minhas entranhas — toda vez em que me encontro face a face com a quietude do ócio e com a inexistência do querer. É esse sentimento, tão difícil de descrever, que se apodera de minha alma nos momentos mais inoportunos e faz com que o mundo perca todas as suas singularidades e vire uma massa amorfa, um amontoado de nadas. Me tira completamente dos eixos, tomando controle sobre meu ser e exercendo sobre ele uma liderança absoluta; me torna inconsciente, atirando minha mente em um limbo completo do qual emergir se torna uma odisseia monumental. Tal sentimento é ampliado pela própria impossibilidade de retratá-lo de forma minimamente palpável, pois consiste em algo de tal forma vago e indefinido que qualquer tentativa de caracterizá-lo resultaria extremamente distante da forma com a qual ele se expressa. Trata-se da ausência, da falta, da omissão; mas não se sabe do quê. É, em síntese, uma ausência generalizada e indefinida que me põe na cobiça de algo que eu sequer sei o nome.

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Sobre todas as crises

Em tudo o que acontece, desde o começo
Houve sempre uma lei que eu reconheço
É mais que indiscutível, é um padrão
Jamais se duvidou se ela existe ou não
Todos os malabaristas nos sinais
As festas com amigos, os carnavais
Todos os terremotos e vendavais
Todas as cicatrizes enferrujadas
Todas as energias canalizadas
Tudo aquilo que você nem suspeitou
Que seria a maior dor que você já suportou
Todas aquelas vezes em que você quis gritar
Mas segurou a raiva até chorar
Todos os momentos tristes e os felizes
Os suspiros de alegria e todas as crises
Aquele desejo ardente que não se vive
Sonhos despeçados e frustrações
Que também alimentam as ambições
Todos os idiotas, todas as vozes
Que te causam mudanças - metamorfoses
Todos esses instantes não vão durar
Efêmeros tal qual o noturno luar
E quando menos esperar - vai passar
Transfigurando-se em poeira estelar 

sábado, 6 de abril de 2019

731

Todos os dias ela aparece — sorrateira e disfarçadamente
Buscando incessantemente uma forma de se esgueirar — passando desapercebida
E me queima, me acende e me ilumina
Me ilumina como uma tocha em uma noite escura
Silenciosamente se apossando do meu corpo — Transformando minha liquidez em secura
Me iluminando como um pano encharcado em gasolina
E jamais me permitindo descobrir
Onde a dor começa e onde termina
Ela me ilumina, fazendo com que eu queime de dentro para fora
O fogo me dilacera, cozinhando minhas vísceras
De forma semelhante às bruxas de outrora
Meu corpo já não responde a meus chamados
Adquire vida própria, pouco se importando se está ou não alimentado
Meu cérebro tampouco funciona da maneira devida
Como se meu verdadeiro eu estivesse mergulhando rumo às fossas marianas
Enquanto outro ego se apossa da minha consciência
E esse processo, um ciclo que se repete maquinalmente, dia após dia
Jamais irá se interromper — até o fim.

terça-feira, 10 de abril de 2018

Me deixa surtar

Eu não quero mais saber o que você pensa a respeito do meu desequilíbrio mental. Estou exausto de ter de sublimar meus instintos, camuflar meus desejos, abrir mão de minha individualidade. Essa máscara de sanidade que se manifesta em você e nos outros já não me evoca nada a não ser desprezo. Eu valorizo a loucura como um direito de todo ser humano. Valorizo aqueles que assumem suas insanidades, suas estranhezas, seus devaneios. Os desajuizados, aqueles que não possuem discernimento. Aqueles cientes de sua falta de tino. Aqueles que não cobram de si e do outros o inatingível, que não acham que a perfeição seja algo alcancável. Aqueles que estão a par de sua própria esquisitice.
Reservo-me o direito de ser esdrúxulo, porque acredito que isso faz parte de nossa essência. Porque sei que todos possuem sua loucura interna, mas são poucos os que embarcam nela e resolvem aceitá-la. Porque durante muito tempo tentei omitir e ocultar meus desvarios, me envergonhando deles. Aprendi, então, a valorizar os momentos de puro delírio, de insensatez. Aprendi a respeitar a irracionalidade, o ilógico, o incoerente e o absurdo. Quero ter o direito de me contradizer, de ser incoerente, inconsistente. Quero poder proferir tolices, proclamar asneiras, ser um perfeito lunático. Porque a sanidade, a coerência e a razão não passam de vãs utopias das quais a maior parte da humanidade ainda não conseguiu se livrar. Acreditam na mentira de que o pensamento humano possa funcionar de forma exata, sistemática e coerente - ledo engano, pois não há nada mais incoerente do que o pensamento humano. Acreditam em uma falsa ordenação, em uma falsa regularidade, fechando os olhos para a nossa implacável realidade caótica - sendo o caos o grande motor da vida, é inútil sair em busca de uma harmonia absoluta: somos desarmônicos, dissonantes. É por isso que eu advogo em prol da sandice, da insanidade, do delírio. Porque são essas as características mais humanas possíveis. Porque elas favorecem a criatividade, o novo, o diferente. Se não fosse a loucura, seria possível existirem os grandes artistas? Os grandes gênios, escritores, cientistas? Seria possível a existência de Da Vinci, Van Gogh, Beethoven, Einstein? Ou será esse um elemento crucial, por nos fazer perder o contato com o real e dar voz, corpo e alma a tudo aquilo que jaz nos confins de nosso inconsciente? A tolice e a insanidade são partes indissociáveis de nossa essência. Tentar livrar-se delas é desfazer-se do que de mais humano há em nós.

domingo, 10 de dezembro de 2017

Respeita meu casulo

Hoje eu não quero sair. Hoje eu não quero abrir minhas asas.
Não quero mais agredir minha mente em nome de ostentar uma imagem — a imagem do cidadão sensato e bem resolvido intelectualmente, aquele diz o que as pessoas querem ouvir. Não quero mais ter de lidar com um espírito adoecido pela desordem, pelo caos, pelo excesso de hostilidade e selvageria que se tornaram o paradigma dos nossos tempos.
Hoje eu não tenho opinião sobre nada — e também não quero ouvir o que os outros têm a dizer. Não quero rever conceitos, tampouco me desconstruir. Não destile suas regras sobre mim, respeite meu espaço. Não seja um invasor de mentes. Não tente me escravizar, colonizar minha alma. Não quero ser cobaia de seus discursos enviesados.
Não quero saber de Marx, Weber, Foucault. Não quero saber de questões sociais ou do panorama político atual. Minha cabeça se encontra temporariamente fechada para reformas.
Não me empurre goela abaixo sua cartilha ideológica, não me interessam suas pseudo-verdades — elas são irrelevantes fora de sua bolha social.
Hoje eu não quero aprender, não quero melhorar como pessoa. Não quero, pois, exercer o esforço necessário para sair da zona de conforto. Antes disso, preciso me reencontrar, preciso estudar as minúcias de minha essência, a anatomia de meu espírito, de forma a entender novamente quem sou. Preciso observar e analisar minha posição perante o mundo.
Hoje a única filosofia possível é a de Alberto Caeiro: aquela que prega que não se deve pensar em nada.
Pensar nem sempre é edificante, em alguns momentos é deletério. Em dado momento enobrece, em outro te tira do sério.
A omissão é meu remédio: tirar férias da existência por tempo indefinido. A fuga do existir pode ser a cura para a minha doença.
Por isso, rogo: Respeita meu casulo, respeita meu vácuo mental. É meu mecanismo de defesa em meio ao caos.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Educação sentimental

Educação sentimental

Jamais me ensinaram a ser forte
Tive de aprender na marra a solidificar meu espírito
Jamais me educaram sentimentalmente
Jamais aprendi sobre a efemeridade das relações humanas
A lidar com a dor da ausência
A não devanear, a não me perder em idealizações
A ser mais pássaro e menos parasita
A colocar o "eu" acima do "nós"
A me apegar ao factual
A não aderir a utopias
A vida que me ensinaram soava como um conto de fadas moderno
Calcada em trabalho, lar, família, filhos
Calcada em eu te amo, em felizes para sempre, em prometo te amar e respeitar até a hora da nossa morte, amém
Calcada na fantasia, naquela perfeição estética arraigada no espírito coletivo
Foi esse o mundo que pintaram no quadro dos meus sonhos

Eis a base da minha desolação no momento em que você se foi
Já que tudo desmorona a tal ponto que o ceticismo envolve a alma
E se torna impossível vislumbrar um recomeço
Eximir-me da culpa não serve de consolo
A casa que me disseram para construir era de palha, frágil e bamba
Mas a casa que eu deveria ter construído era de tijolos, firme e resistente

Não aprendi na escola como me libertar
Aprendi apenas a procurar o outro
E na procura do outro encontrei apenas o reflexo do meu pensamento: vazio e inerte
Ninguém jamais me orientou a adquirir plenitude de espírito
A educação sentimental que eu recebi foi nula
Ancorada na farsa e na ficção
Gerou desastrosos desapontamentos
Enturvou minha visão
Obscureceu minha verdade
Não passou de uma falsa janela
Que supostamente apresentava o mundo – quando, na realidade, o encobria
Com um disfarce que, longe de me mostrar a felicidade, apenas a escondia.
(27/11/2017)

domingo, 13 de agosto de 2017

A poesia não existe nos fatos

Desculpe, Oswald, mas a poesia não existe nos fatos
Ela está presa às singularidades do sujeito
Não se faz poesia com o concreto
O poema é composto de um emaranhado de nadas
Pois nada do que existe nele é factível
O poeta é um artesão de falsas realidades
Um artífice do ilusório
Um mentiroso compulsivo

Palavras são instrumentos onipotentes
Capazes de pavimentar longas estradas
Exterminar todas as mazelas imagináveis
Alterar as leis da física
Mudar a realidade

A felicidade está ali:
Naquele mundo onírico
Está na existência de possibilidades
Está no sonho e na esperança
Está nas incertezas que dão origem às nossas utopias
Inventar, criar, fabular: tudo o que nos move
É trabalhar com o imaginário

Somos um conglomerado de subjetividades
Incapazes de manter os pés no chão
Mas ao mesmo tempo crentes de que isso seja possível

É por isso que a poesia é necessária:
Por não trabalhar com fatos
Por trazer à tona essa ilustre contradição:
Sendo a maior demonstração existente
De que nos guiamos pelo inexistente

quarta-feira, 5 de julho de 2017

Reinventar-se é uma característica dos fortes

Jamais cultive mesmices
O mundo é cruel com tudo o que é estável
Flexibilidade é conhecida como a máxima virtude
Heráclito tinha razão:
Tudo tem base no devir
Mais inevitável que a morte,
É a impossibilidade de parar o fluxo constante das coisas

Jamais pare no tempo
O anacronismo é deletério
A inércia é fatal
O comodismo é destrutivo
E o marasmo é um grande mal
Aliado do desinteresse, da apatia
Princípio causador de toda agonia
Deixaria de ser humano se por acaso decidisse
Que a vida estagnada vale mais do que a maluquice
Da eterna busca pelo novo

Pois há, na vida, uma regra primária:
Tudo é perecível, tudo é momentâneo
E deves acompanhar esse movimento
Se quiseres, um dia, viver sem tormento